Bianca Monteiro Garcia é editora da Macabéa Edições e da Taioba Publicações, formada em Letras e pós-graduada em Literatura Brasileira pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É também revisora e professora. Tem poemas e entrevistas publicadas em revistas e podcasts de literatura no Brasil e no exterior. breve ato de descascar laranjas é seu livro de estreia, publicado pela Macabéa Edições em parceria de coedição com a editora 7letras. Participa das antologias La juventud de la poesía en Brasil (Revista Esteros, Uruguai), Voces femeninas de la poesía brasileña actual (Revista La Outra, México); Nós (selo off-flip); 37 escritoras neolatinas contemporâneas (editora Philos) e Festa (editora Aboio).
uma casa sólida de cimento
muita coisa morre quando morre uma pessoa
a casa morre
fica a carcaça
a mesa dos aniversários
a escada das fotos comemorativas
a piscina de plástico no terraço
o hábito dos relógios
muita coisa morre quando morre uma pessoa
a casa habita outras memórias
e o que resta da família habita outras casas
uma moradia fincada no limbo
um navio ancorado no espaço dos dias sem minutos
sujeito sem endereço
a casa-casa:
imóvel habitacional da caixa
uma casa se amarra pelo teto
mas não se pede para viagem
rastro
sonhei que dona enir tirava a roupa
levantava de sua cama e caminhava devagar
em direção a um quadrado sinalizado no quarto
era na verdade um chão falso
um porão escondido
com degraus tímidos
dona enir descia os degraus
com o breu na ponta dos pés
e me encarava com seu olhar
de calma e desespero intercalados
um aguaceiro tomava conta do quarto
enquanto o porão engolia dona enir
segui os rastros
encontrei neste porão
corpos de mulheres
e suas medicações ao lado
os uniformes rasgados
apressei o passo
o porão
uma espécie de subsolo em espiral
exalava chorume e flor de cerejeira
encontrei dona enir numa lojinha
de pequenos empreendedores
experimentando brincos e tiaras
acordei num solavanco
olhei para o chão
testei o quadrado contornado
pelo aguaceiro
da torrencial chuva
de verão
que invadia a janela
do quarto
71 flores no edredom
para margaret atwood
aprender a sussurrar
sem qualquer ruído
esticar as mãos brevemente
sobre o espaço
contê-las num espasmo
como nos conventos
o sermão do demônio mudo
[filhas de eva ou filhas de maria?]
planta fértil sob solo imaculado
um tenro desastre
no degase não há espelhos
apenas o reflexo da privada
encara a interna um soco no estômago
na colônia juliano moreira não era diferente
loucas e histéricas histéricas e loucas são
as que ocupam a ala feminina
os outros da ala masculina só são perdidos
drogados
quando não tarados
você fica vulnerável dentro de uma banheira
em especial
numa ditadura teocrática
travestida de manicômio
com hora marcada para deixar a água
talvez o tédio seja erótico
quando são as mulheres ao fazer
para os homens
como bater continência em dias frios
existem 71 flores neste edredom
setenta e uma
o sol do fim da tarde ilumina o baú
encostado ao pé da cama
demarca o limite de espaço que posso percorrer
antes era cárcere
agora: o quê?
olhos sujos no relógio da torre
vigiam e oram
vigiam e oram
os olhos de deus
percorro com os dedos a textura longa e ondulada
do edredom de 71 flores
movimento de fluidez e ritmos
viajo sem sair do perímetro do quarto
dançarinas esguias de branco
passam rápida e graciosamente
entre as árvores os últimos lírios
sobre o palco do theatro municipal
antes da bomba de gás lacrimogêneo
pernas ligeiras e autônomas
escondem pés mutilados e joanetes
o tempo
o tempo é ainda de fezes, alucinações e espera
um rato está livre para ir pra qualquer lugar
do labirinto
corpo cativo, alma liberta
é como são adestradas as
incubadoras do estado
quando não assassinas do próprio ventre
bíblia sim
constituição não
não somos maçons
no edredom tem 71 flores
tem 71 flores no edredom
11 dias com nellie bly
alda tira o chapéu e espera a última embarcação
desobedece a cavalaria militar e seus passos
e saltos e botas e terços
o barulho da ambulância
o sino de novas cativas
uma placa em cada quarto anuncia
é preciso tirar do rosto os restos de sono
passos brutos pelos corredores sem tapete:
cantiga dos que dormem sem contar as horas
é terça-feira
é terça-feira o dia do despacho
srta. grupe e suas linhas rígidas de expressão
ao redor da boca não gosta de gatos e de sapatos
maura, nellie e lima dizem:
— quem gosta de gatos não gosta de loucas
as paredes brancas fluorescentes:
pimenta para os olhos
três litogravuras de fritz emmet e duas de anônimos
uma dose homeopática de perdão para cada erro
paredes brancas e geladas golpeavam
a janela com assobios
tapas e empurrões na fila do refeitório
sem facas sem garfos nem palitos
uma nova forma de conter o frio
e as anáguas funcionam como toalhas
as calcinhas lavadas como lenços
vigiar vigiar os ponteiros até que chegue o último barco
o último último de todos os barcos
sem tirar o chapéu no cais
pra acenar ao caronte da vez
quando o mundo baldio
para carla diacov
agora sou esta involução da formiga
a carregar sacolas da casa ao mercado
do mercado à casa em ímpares dias
no apocalipse das vacas magras
à espera do dia em que não mais verei o sol apenas
através da tardia fresta da janela do meu quarto
enquanto não chega o dia depois do fim do mundo
sou esta apática a observar
o aniversário dos minutos
duas vizinhas mascaradas
cometem sentadas conversas
no portão com copos embebidos de álcool 70
[a máscara dos objetos]
das vezes em que este terno ciclo acontece
nas portas da vila a xícara
se torna tão menos xícara
esquecida na mesa da cozinha
indaga o céu que não mais vê o teto
sendo diariamente noite
este céu que faz falta no peso do corpo
de cima
a cidade cercada e nós nas bolhas
um novo jeito de habitar trincheiras
Desenho de Ariyoshi Kondo.